a eternidade e um momento

Ao fim da tarde, dirijo-me ao Ganges, e passeio pela margem. É o meu ritual de regeneração do corpo e mente. Invarialvelmente este passeio enche-me de uma leveza espiritual que ando a tentar explicar-me.
Não deriva certamente do lúgubre espectáculo dos cadáveres a serem cremados. nem da decadência elaborada dos edifícios. Não é sequer pelo êxtase flutuante dos peregrinos que se enfiam no Ganges sujo, fétido, sacro - o êxtase é deles, e eu não sou um parasita do misticismo alheio.
Esta hora do dia, a luminosidade bálsamica e o anúncio da noite deixam no ser humano, desde que o é, uma sensação de serenidade. O que eu sinto em Varanasi é diferente, não é da hora do dia.
Para os Hindus, morrer aqui fecha o ciclo infinito de reencarnação, abre as portas do Paraíso eterno. A morte que eu espreito, tem uma condição positiva, "amável, desejável", na Europa o terror da morte suscitou a mais viva aspiração à imortalidade civil e espiritual; enquanto na Índia, o terror da vida suscitou uma oposta aspiração à anulação definitiva através da ascese, do nirvana.
O que eu sinto é a levesa espiritual de não estar preso ao terror da vida nem ao terror da morte. Sou um espectador livre de aproveitar cada dia como se fosse o último, de dar atenção a cada momento como se nele se cristalizassem todos os momentos da eternidade, de viver cada minuto com a intensidade e a concentração de quem deve nada, nem espera nada, em troca.

in planisfério pessoal de Gonçalo Cadilhe

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7 comentários:

Nilson Barcelli disse...

Nunca fui à Índia.
Mas não perdi a esperança de ver o Ganges...

Bom resto de semana, abraço.

un dress disse...

ai sim e com que força e de que modo se vive e se morre ali!

e como percebemos definitivamente que a inculcação cultural dos comceitos - o medo o amor os objectivos de vida, no dito ocidente cheiram a ilusão a irrelevância, a azedo!

e que neles e deles afogamos a vida!

obrigada por lembrares...pelo belo texto...



.beijO

Susana Júlio disse...

Excelente texto. Daqueles que nos levam a recordar a diversidade de culturas e de mentalidades, de hábitos e de crenças...e que para uns o que significa o final assustador de qualquer coisa, da vida, para outros faz parte de um ciclo natural da existência...muitas religiões assim o crêem e se calhar é a forma mais "saudável" e verídica de o experienciar...

Mas estamos assustados, aqui nas Europas, por um Anjo-demónio-Monstro secular com uma sombra pesada de milénios que dominou e muito as nossas cosnciências e crenças.

Beijinhos grandes aqui da Teia.

ॐ Hanah ॐ disse...

Belo post...

parece-me um degrau realistico do que possa ser o Dharma...Budico...

Abraço grande

Anónimo disse...

Belo post.avivou (me) a diferença!

Um dia ainda hei-de ir à índia :)

Plum disse...

A leveza espiritual que eu espero sentir quando lá estiver!!!Abraços!***

Hugo Gonçalves disse...

Um dos meus grandes sonhos é um dia poder visitar a Índia. Tenho a certeza que será uma experiência inesquecível. Por favor fala-me mais sobre essa tua experiência.

Abraço